sexta-feira, setembro 29, 2006

Super-herói brasileiro num sonho americano

Reportagem do Globo Reporter de 22/09/06

Fim do dia numa pequena cidade brasileira. Na brincadeira e no sorriso das crianças, o sossego é apenas aparente. O medo está no olhar, na tristeza da fala.
"A notícia que temos é de que as pessoas estão sendo presas, eles estão mandando embora e até matando", conta a estudante Gislene Ferreira da Cruz.
Em Gonzaga, no leste de Minas Gerais, alerta geral para o cerco aos migrantes nos Estados Unidos.
"Há imigrantes que às vezes não estão legais, mas vivem lá há 20 anos e estão sendo expulsos. Isso é muito triste", comenta o comerciante Giovani da Silva.
O comportamento dos americanos mudou. "Eles ficaram mais agressivos e não gostam de imigrantes. Em Long Island, eles saíram com uma placa dizendo 'Fora imigrante'", conta o comerciante Cleidson de Araújo.
Entre tantos endereços do medo, a equipe do Globo Repórter começou a jornada pela casa da família Ferreira da Cruz. É à noite, quando todos se encontram para jantar, que fica mais evidente: à mesa está faltando um.
"A gente até sonha com ele voltando. Nossa! Eu tinha tanta vontade de que ele estivesse aqui", diz Gislene, filha do pedreiro Osvaldo, que leva vida de clandestino nos Estados Unidos.
"Papai fica mais dentro de casa. Ele não sai porque tem muito medo de vir embora", conta a jovem.
"Se ele for achado na rua de bobeira, eles vão pegá-lo. Está muito difícil lá", acrescenta a dona de casa Maria Mirtez da Cruz, mulher de Osvaldo.
Um ilegal em terra estrangeira. Mas, aos olhos da família, um herói como no sonho americano. Gislene e as irmãs dizem que é muito difícil ficar longe desse Super-Homem.
"Vai fazer dois anos que ele foi embora e nem pagou a dívida ainda, porque tem família para cuidar. A dívida é do dinheiro que ele pegou emprestado para poder ir", conta Maria.
"Não é só aqui na minha casa que isso acontece", diz Gislene.
Da janela, a dona de casa Maria Otoni de Menezes, mãe do brasileiro Jean Charles de Menezes, viu nas casas ao lado outros jovens deixarem o Brasil. Na pequena Gonzaga e nas cidades vizinhas, o mapa do maior pólo de emigração do país é resultado de um estudo inédito que acaba de ser concluído. A socióloga Sueli Siqueira fez a mais completa pesquisa já realizada sobre a região que exporta brasileiros desde a década de 60. Foram mais de 300 entrevistas no Brasil e em sete cidades americanas.
"Eles emigram para ganhar dinheiro e retornar. E o sucesso dos que vão e voltam instiga aqueles que residem nestas regiões a fazer o mesmo caminho", diz a pesquisadora.
Pelas ruas, pode-se ver: carros, prédios e casas são os troféus de quem conseguiu fazer a América.
"É uma casa que mostra exatamente isso. Ela tem toda uma arquitetura completamente diferente da arquitetura das outras casas", avalia Sueli.
As estimativas são de que cerca de 250 mil habitantes da região estejam hoje nos Estados Unidos. Lá, os brasileiros trabalham principalmente como babás (12,1%), empregados de limpeza (16,3%) ou na construção civil (27%). Mas as oportunidades estão diminuindo.
"Agora há interesse dos americanos em ocupar as vagas do mercado secundário ocupadas pelos brasileiros e que antes não os interessavam. O local onde eles conseguiam o maior número de empregos era exatamente na construção civil. Reduzida a construção civil, eles têm menos oferta e o valor da hora de trabalho cai", esclarece Sueli.
Menos emprego lá, menos dinheiro aqui. Novos prédios continuam sendo erguidos em várias cidades da região, mas o ritmo diminuiu.
"O reflexo imediato aqui é normalmente a diminuição de investimentos na cidade. Percebemos na contratação de mão-de-obra, na compra de material", diz Paulo Marcos Costa, da Associação dos Parentes e Amigos dos Emigrantes de Minas Gerais (Aspaemig).
Na Polícia Federal, outro termômetro de queda na emigração. Há um ano, o Globo Repórter registrou o grande número de pessoas interessadas em tirar um passaporte. A equipe voltou ao local e encontrou a fila bem menor. A média de passaportes emitidos por dia caiu de 200, em 2004, para 68, neste ano. A região corre o risco de uma crise, com a redução no fluxo de dólares enviados pelos migrantes.
Segundo a Aspaemig, 60% de toda a arrecadação da prefeitura de Governador Valadares vêm dos brasileiros que estão nos Estados Unidos. Resultado da cobrança de impostos sobre os investimentos que eles fazem na cidade, como os loteamentos, por exemplo.
Mas há outro preço, bem mais alto, que está sendo pago por milhares de famílias: para buscar os dólares lá fora, pai, mãe e filhos estão sendo obrigados a seguir caminhos diferentes.
Em Governador Valadares, ficou a socióloga Camila Faria Pereira. Os pais dela estão na América há seis anos. "Eu sempre imagino eles perto de mim", diz ela, para explicar a experiência de conhecer o dia-a-dia dos pais por foto.
Haja imaginação para não se sentir sozinha numa rotina de trabalho, ônibus e casa, sem os pais por perto. "Eu sei que não foi um abandono, mas como pessoa e filha, essa carência às vezes me faz ter essa sensação. Às vezes, me sinto revoltada e fico me perguntando por quê?", conta Camila.
Dor parecida com a da família Ferreira da Cruz, a do pai super-herói. Quem dera ele pudesse vir voando quando a saudade bate. Para a Maria, as conquistas do marido com esse sacrifício não valem a pena. "É muito difícil ficar longe da família um, dois até três anos", diz ela.
"Eu gostaria que ele estivesse na minha formatura no ano que vem. Mas acho que não vai ser possível", lamenta Gislene.
Não foi possível para os pais de Camila. Na formatura em Sociologia, no ano passado, eles não vieram. Já adiaram várias vezes o retorno.
"Meus pais justificam a ida deles há seis anos para pagar minha faculdade. Em alguns momentos, eu penso que não queria ter essa faculdade. Estou criando a expectativa de que ir também para os Estados Unidos pode dar certo", diz Camila.
Um reencontro que está sendo antecipado pelos que não resistiram aos novos tempos na América, como a escassez de emprego. Cleidson teve que comprar uma vaga de trabalho.
"Isso aconteceu comigo. O cara veio para o Brasil e vendeu seu trabalho para mim. Eu paguei US$ 300 pela vaga de emprego", conta.
Mas entre o bolso e o coração, Cleidson, que não estava no Brasil quando a filha nasceu, resolveu voltar. Agora o ganha pão está na venda de fraldas descartáveis que ele mesmo fabrica e na gravação de festas em vídeo. Nenhum centavo em dólar. E nem sombra de arrependimento.
"Eu preferi ficar aqui, mesmo tendo pouco trabalho e poucas coisas. Preferi vir para ficar com a minha família", diz Cleidson. "Eu me sinto realizado por ter vindo embora e ficar tranqüilo aqui".
"Se ele tivesse ficado lá uns dez anos, jamais poderia viver de novo os momentos que perdera da filha", diz a dona de casa Welma de Menezes, mulher de Cleidson.

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